Não há duas crianças iguais, dizem educadores, pediatras e sabem os pais, tios e avós. Há miúdos que começam a andar mais cedo, outros que falam mais tarde. Reagir precocemente ajuda, quando aparecem os primeiros sinais de alerta.
A Marta foi a primeira filha, a primeira neta e a primeira sobrinha na família. Recebia todas as atenções e nunca teve dificuldade em fazer-se entender – mesmo quando, já depois dos dois anos, ainda não conseguia verbalizar bem o que queria. «Era uma criança rodeada de adultos que a compreendiam, muito apaparicada», conta a mãe, Helena Agostinho. «Toda a gente achava muita graça à forma como ela falava e dizia cui em vez de leite ou repetia totinho para pedir a história do capuchinho vermelho».
Helena corrigia sem grande sucesso as palavras da filha e ia recebendo do médico e das educadoras a mesma resposta: «Não se preocupe!». Só que o tempo foi passando, a Marta cresceu, teve que mudar de escola e integrar uma turma de meninos já com mais de três anos, e, um dia, a professora fez um comentário que fez soar o alarme. «Ela às vezes quer brincar a uma determinada coisa com os outros meninos, mas como não consegue exprimir-se, os outros desinteressam-se», contou-lhe.
Foi o suficiente para Helena Agostinho, que tem formação em Psicologia, marcar uma consulta de desenvolvimento no Hospital de Santo André, em Leiria, onde vive a família. O diagnóstico veio confirmar as suas suspeitas de que qualquer coisa não estava bem. A Marta compreendia tudo e não sofria de nenhuma perturbação cognitiva, mas tinha problemas na articulação dos sons e palavras: precisava de terapia da fala.
TERAPIA MAIS DO QUE DA FALA
A terapia da fala pode ser útil em qualquer idade e é utilizada com objectivos tão diferentes como o desenvolvimento do instinto de sucção de um bebé prematuro, a promoção da comunicação numa criança com autismo ou a recuperação da fala de um adulto que sofreu um AVC. Abrange áreas muito diversas. «O terapeuta intervém ao nível da linguagem, da fala, da voz, da motricidade orofacial e das dificuldades de aprendizagem de leitura e da escrita», explica Ângela Nogueira, terapeuta no centro Diferenças, em Lisboa.
Nas crianças, as dificuldades no desenvolvimento da linguagem (compreensão e expressão) podem mostrar-se muito cedo – aos seis meses, um bebé já deverá reagir aos sons e ao contacto ocular (ver quadro anexo). Mas é sobretudo a partir dos dois anos que incidem as preocupações paternas, por ser nessa altura que a maioria dos miúdos inicia a verbalização e a pressão social começa a fazer-se sentir. «O que é que ele já diz?», perguntam todos.
«Em média, as crianças dizem as primeiras palavras aos 18 meses. Começam por mamã, papá, agum ou aba para água, etc.... sabem o nome do ursinho ou o nome da avó, do cão, do gato», confirma a terapeuta da fala Jaqueline Carmona, do CADIN, Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil, em Cascais, especializada em casos de disfluência (gaguez). Fala-se, contudo, no desenvolvimento considerado típico com base em dados estatísticos. «Não há dois irmãos que falem igual, nem sequer dois irmãos gémeos», alerta a terapeuta.
Os miúdos evoluem de uma forma progressiva, mas nem sempre linear. «É muito vulgar surpreenderem-nos, especialmente quando há uma interrupção, mesmo curta como acontece na Páscoa. Às vezes, basta uma mudança de ambiente, uns dias com os pais, para darem um salto, desabrocharem», garante a educadora de infância Ana Paulino Jorge. Além disso, «em termos de desenvolvimento linguístico, estar seis meses atrás do esperado não é grave», acrescenta Jaqueline Carmona. Por isso, nem sempre é fácil saber quais são os sinais de preocupação e como e quando se deve agir.
PREGUIÇA OU PROBLEMA?
O Manuel, hoje com seis anos, foi desde bebé um miúdo muito dado, sem qualquer problema em fazer-se entender, no diálogo com os crescidos ou com outros miúdos. Aos dois usava um vocabulário próprio e utilizava com mestria e graça sons e gestos para comunicar – e assim continuou até perto dos quatro anos.
A mãe, Ana Alcoforado, dava o benefício da dúvida e esforçava-se por acreditar no que todos lhe diziam: «vai ver que, de um dia para o outro, ele começa a falar». Mas manteve-se atenta. «O Manuel não era um miúdo que aumentasse o som da televisão para ouvir melhor, eu não precisava de o chamar duas vezes e não tinha indícios de abstracção ou isolamento perante a realidade», explica. Um encefalograma e os testes de otorrino nada apontaram e foi por sugestão da directora do colégio que frequenta, em Sintra, que o Manuel fez a primeira avaliação e iniciou a terapia da fala aos três anos e meio. Na consulta de pediatria dos quatro anos confirmou-se que o Manuel estava a ter problemas na aquisição linguística, foi a uma consulta de desenvolvimento e passou a ser acompanhado pela terapeuta Ângela Nogueira no centro Diferenças. «Estas consultas deviam fazer parte do plano nacional de saúde, até para os pais saberem quando devem preocupar-se ou não», diz hoje Ana Alcoforado. «A preguiça às vezes serve de desculpa para coisas a mais», lamenta.
A reacção do Manuel à terapia, que incluía apoio psicopedagógico, foi imediata. «O salto foi gigantesco neste último ano e meio», garante a mãe. Toda a família se envolveu nos trabalhos de casa e treino dos exercícios sugeridos pela terapeuta – sempre com entusiasmo, bom humor e «sem fazer disso um cavalo de batalha», para evitar a saturação. O Manuel iniciou em Setembro o primeiro ciclo do ensino básico e não sabe ainda quando terminará a terapia da fala. «Ele tem também um palato pequenino e um pragmatismo ligeiro que vai ser corrigido com um aparelho. Se não fosse isso, penso até que já teria tido alta antes», diz Ana.
SINAIS DE ALARME
«A aquisição tardia da linguagem e a prevalência de produções verbais incorrectas (erros na articulação dos sons, omissão de sílabas na palavra, etc) podem ter consequências nas futuras aprendizagens escolares da leitura e da escrita», afirma a terapeuta Ângela Nogueira. Adriana Vieira, professora do primeiro ciclo do ensino básico concorda. «A maioria dos casos é sinalizada no ensino pré-escolar. Mas há miúdos que se perdem em burocracias [uma consulta de desenvolvimento no serviço público pode demorar três a seis meses], outros que os pais acham que é mimo ou tique de fala até chegarem ao primeiro ciclo e perceberem que o problema está a comprometer a leitura», explica.
«Há uma variabilidade individual, mas é muito importante que a família, os professores e pediatras valorizem as idades normais para uma determinada aquisição linguística», diz Ângela Nogueira. Até porque, sublinha Adriana Vieira, os atrasos no desenvolvimento da linguagem graves acabam por afectar a relação social da criança, por prejudicar a sua auto-estima e chegam a levar a comportamentos desviantes para chamar a atenção. «Não conseguir comunicar é muito complicado. É como cair na China de repente e querer dizer alguma coisa sem saber chinês», exemplifica Jaqueline Carmona.
«No desenvolvimento da linguagem, a criança passa por várias etapas em diferentes idades, adquirindo novos conhecimentos linguísticos», lembra Ana Mafalda Filipe, terapeuta da fala do projecto Crescer e Aprender, localizado em Oeiras. Os sinais de alerta surgem quando um miúdo se mantém demasiado tempo na mesma etapa sem conseguir avançar.
Aos dois anos, poderá ser preocupante a criança não falar, só produzir vogais, não usar ainda palavras ou frases simples, não nomear, não usar gestos. Aos três, a incapacidade de produzir uma frase, compreender um recado ou desenvolver um conceito numérico pode ser problemática – mas ainda não é exigível que pronuncie correctamente os «lhe» e os «r», por exemplo. E um discurso ininteligível ou a dificuldade em iniciar uma frase ou repetir sílabas, já com quatro anos feitos, pode significar necessidade de terapia.
UM CASO EXEMPLAR
Maria do Carmo Vale, pediatra, considera que «a partir dos dois, três anos, mesmo que a criança mostre entender o que lhe dizem e se expresse gestualmente, deve ser avaliada por um terapeuta» para confirmar se existe imaturidade ou não. «É importante frisar que o diagnóstico precoce é fundamental e se existem dúvidas é sempre melhor fazer uma avaliação para as conseguir esclarecer do que ignorá-las», reforça Ana Mafalda Filipe. Nem sempre é fácil, como bem sabe Helena Domingues, que se multiplicou em pesquisas e consultas para ajudar o filho David, hoje com nove anos. Mas o resultado pode ser deveras compensador.
O David começou por dizer mamã e papá e, um dia, deixou de falar. Era um miúdo carregado de frustração, que chorava muito, fazia birras, tinha crises de agressividade, passou por fases em que recusava a comida e gritava sempre que alguém o fazia entrar num restaurante ou num autocarro cheio de gente. Só o nunca desviar o olhar e as comprovadas tentativas de comunicação afastavam o diagnóstico de autismo.
Às consultas de pedopsiquiatria, juntaram-se duas horas semanais de psicomotricidade e de terapia da fala – aos três anos. «O David fez um ano de terapia sem dizer uma palavra, mas isso não queria dizer que o seu cérebro não estivesse a aprender os mecanismos da fala. Um dia, ele disse uma palavra, depois outra», conta a mãe emocionada. E foi ficando mais concentrado, mais receptivo.
Helena deixou de trabalhar – fazia só umas horas numa loja de brinquedos quase como terapia – para poder acompanhar o David na sua super ocupada rotina e ao mesmo tempo dar atenção aos dois filhos mais velhos, um deles hiperactivo. Não foi fácil e monetariamente as opções que foi tomando têm sido pesadas – «mesmo com as comparticipações do seguro, acho que dava para comprar um carro todos os anos», diz com um meio sorriso. Mas «esta é uma fase muito importante de um filho, em que se tem de fazer tudo o que possa ser feito. Existe um período biológico para se aprender a falar, há um prazo de validade e quanto mais tarde se começa a trabalhar, pior», repete. Sente-se realizada com o facto de o David, que é medicado e faz terapia de fala semanalmente, ser um miúdo feliz, aluno de Bom e Muito Bom. E é com um riso genuíno que reage à frase que o David diz com humor de cada vez que se engana numa frase: «Ai, este cérebro estúpido que não sabe dizer esta palavra bem!».
COMO FALA O MEU FILHO?
Do nascimento aos 6 meses
O seu bebé reage a sons, olha e/ou move a cabeça em direcção ao som
Produz sons
Fale com o seu bebé de modo calmo e carinhoso
Cante para ele
Explique-lhe os sons que ouve
Nomeie as pessoas familiares e os objectos que o rodeiam
Converse com ele sobre o que está a fazer
Procure ajuda
Observe se o seu bebé reage a sons, se não consulte o seu médico
Procure ajuda se ele evita o contacto ocular – base da comunicação
Aos 12 meses
Compreende ordens simples
Diz ‘mamã’ e ‘papá’
Responde ao seu nome
Brinque com a sua voz, o seu bebé irá gostar: a melodia da fala ajuda-o a compreender e a desenvolver a linguagem de modo efectivo.
Ajude o seu bebé a descobrir o prazer da comunicação: incentive todo o tipo de interacção – fazer caretas, sorrir, rir, olhar…
Nesta fase do desenvolvimento a TV não tem qualquer valor para um bebé
Não o deixe à frente da TV durante muito tempo, não promove a comunicação!
Procure ajuda
Se o seu filho não disser algumas palavras
Se o seu filho apenas comunicar com gestos e mímica
Aos 18 meses
Compreende instruções simples
Nomeia objectos familiares
O vocabulário aumenta
Fale com o seu bebé, utilize palavras e frases simples, mas não infantilizadas
Mostre-lhe livros e fale com ele sobre os mesmos
Estimule o interesse por cores e formas
Procure ajuda
Se o seu filho deixar de falar
Se a sua linguagem parar de se desenvolver
Se revelar sinais de deterioração
Aos 2 anos
Compreende instruções complexas
Diz o seu nome
Faz frases de 2-3 palavras
Enriqueça o seu vocabulário
Explique-lhe as palavras que desconhece
Repita as palavras que ele não pronuncia, mas não lhe peça para repetir
Procure ajuda
Se tem a sensação que o seu filho não a compreende
Se o seu filho disser apenas algumas palavras
Se o seu discurso for ininteligível
Se não produzir frases de 2 palavras
Aos 3 anos
Compreende frases simples, pequenas histórias
Faz perguntas
Utiliza alguns plurais e preposições
Ensine o seu filho a contar histórias, ajude-o a entender os seus pensamentos e sentimentos
Encoraje-o a deixar de usar o biberão e/ou chupeta
Procure ajuda
Se a fala permanece ininteligível
Se usa apenas alguns verbos e não produz artigos e adjectivos
Se não utiliza plurais
Se não constrói frases simples
Aos 4 anos
A fala do seu filho é ‘semelhante’ à do adulto em termos de gramática
Leiam histórias em conjunto, à vez vão
contando a história, deste modo estimula
uma atitude positiva para com a linguagem
e para com a leitura
As crianças seguem exemplos, deixe que
ele a veja ler
Procure ajuda
Se para o seu filho é difícil iniciar uma
frase ou repetir sílabas/palavras
Se constrói apenas frases curtas,
mal estruturadas
Se o seu discurso nem sempre é inteligível
Se ele não for capaz de recontar acontecimentos
Revista: Pais e filhos
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